segunda-feira, 12 de maio de 2008

Inteligência artificial

Saiu no Estado de São Paulo - Um pouco de design da informação e até design de interfaces. Para refletir...



Sorrio ainda hoje ao lembrar do título de um artigo do meu saudoso mestre Richard M. Morse. Chama-se ''Desliguem os computadores que eu quero descer!'' Aborda a história dos estudos acadêmicos nos Estados Unidos voltados para o Brasil e seus autores, os brasilianistas. Morse critica um certo fordismo na produção americana do saber sobre a América Latina depois da revolução cubana. O artigo foi escrito em uma máquina Olivetti 22 na década de 1970, antes da invenção do computador pessoal. Espirituoso, Morse pensava em grandes ''mainframes'' eletrônicos acoplados a esteiras, em que corriam cientistas sociais.

A imagem me veio à cabeça na semana passada, ao tentar desligar meu próprio laptop. É novo. Estamos nos conhecendo um ao outro. Percebo alguns atritos ou fragilidades na relação. Tento desligá-lo, mas ele não obedece. Fica aí, na mesa, meio dormindo, fingindo-se de morto. Mas, pelos meus critérios, está funcionando. Percebo sinais de consciência, mesmo com a tampa fechada.

O problema não é do computador, mas meu. Só pode ser meu. Vem se repetindo com diversos aparelhos eletrônicos há algum tempo. Sou do tempo do claque-claque. É o barulhinho que faziam os botões de ligar e desligar. On e off. Claque. Claque. Funcionava. Era simples e direto. Não sei por que mudou.

O mais problemático talvez seja o videogame do meu filho caçula, Samuel. É um Play Station 2. Não sou analfabeto em jogos eletrônicos. Mas meus conhecimentos são de outra geração de aparelhos. No início da década de 1990, cheguei a editar diversas revistas de videogames. Não me lembro de ter enfrentado dificuldades para desligar o Mega Drive ou o Super Nintendo, por exemplo.

Já o Play Station 2, que roda DVDs, é outra história. Para começo de conversa, o botão é disfarçado, integrado sem marcas distintas ao painel da frente. Cheguei a pensar que foi feito assim para que nunca fosse desligado pelos pais. Mas concluí que era paranóia. Mesmo depois de ter localizado o botão, no entanto, tenho dificuldades para acioná-lo. Ele não faz barulho nenhum. Claque, então, nem pensar. O objetivo, pelo que entendi, é passar da luz verde à vermelha que, depois de um tempo, se apaga.

Pensei ter conseguido na noite de quinta-feira. Apareceu a luz vermelha, o DVD parou de rodar; fez-se o silêncio. Ufa. Subi da sala, onde fica o aparelho, até o quarto, para ler meu livro. É um romance ótimo, de David Lodge. Chama-se Thinks... e, pelo que vejo na internet, foi lançado no Brasil em português pela editora Best Seller com o título Pense... Discutindo o politicamente correto, Lodge especula que, no futuro, vamos inventar a desculpa de ter um encontro com a amante para poder sair e comer, escondido, um bifão. Dei uma boa risada e desci a escada para pegar um copo d''água. A sala estava escura. Aparecia, apenas, ali do lado da televisão, a luz verde do Play Station 2. Orgulhoso, tirava sarro da minha cara.

Se eu escrever que desliguei de novo o aparelho e que, uma hora mais tarde, repetiu-se a cena, você não vai acreditar. Dirá que é ''passarinho''. É esse o nome que Mario Prata dá aos pequenos artifícios utilizados na crônica para avançar a narrativa. Uma mentirinha, digamos assim. Mas aconteceu. Juro. Depois, dormi.

Quando acordei no dia seguinte e abri a tampa do laptop para escrever estas mal traçadas, o bicho acendeu-se por inteiro. Luzes piscaram em seqüência, como os caça-níqueis de Las Vegas, a tela se iluminou, apareceu meu nome e o pedido de uma senha. Ele não estava desligado. Dormia, apenas, como eu. Começa assim, pensei. Depois, as máquinas tomam conta de tudo.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080512/not_imp171043,0.php

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Denise Eler

Denise Eler

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